O que é a luz líquida? Um fenômeno surpreendente que desafia as leis da física

Este misterioso estado da luz, que vai além de nossa experiência cotidiana, é tão estranho que faz com que as ondas eletromagnéticas se apresentem em um estado intermediário, compartilhando características tanto de líquidos quanto da luz que todos conhecemos.

Este tipo de luz foi descoberto em 2002, quando o professor Humberto Michinel da Universidade de Vigo descobriu, ao realizar simulações sobre um tipo particular de meios ópticos – tecnicamente chamados de meios fortemente não lineares -, que a luz se condensava como um líquido. A este fenômeno denominaram, na época, luz líquida e seu descobrimento foi definido pelo Instituto Americano de Física como um dos ‘dez grandes’ do ano de 2002. Foi preciso esperar até dezembro de 2013 para que essa ideia passasse do mundo teórico para a realidade: a primeira luz líquida foi observada em um gás de átomos de sódio. Pouco tempo depois, uma equipe de pesquisadores do Laboratório de Fotônica Avançada do Instituto de Nanotecnologia em Lecce (Itália), em colaboração com o Politécnico de Montreal, o Centro de Excelência da Universidade Aalto da Finlândia e o Imperial College de Londres, demonstraram experimentalmente que é possível fazer com que a luz se comporte como um líquido à temperatura ambiente.

Claro, andando pela rua não vamos ver a luz fluindo pelas esquinas. Esta peculiar propriedade da luz só aparece quando se recriam umas circunstâncias muito particulares. No caso deste experimento, essa ‘fluidez’ aparece quando a luz se “veste” com elétrons e disso deriva uma peculiar mistura de luz e matéria que se chama polaritom: resumidamente, é uma quasipartícula que surge do acoplamento entre um fóton e o meio material por onde se move. Vamos explicar isso passo a passo.

Polaritons

Uma quasipartícula é uma partícula que viaja rodeada por uma nuvem de outras que as arrasta em seu caminho. A melhor analogia é imaginar um esquiador descendo uma ladeira coberta com neve em pó. Ao fazê-lo, o esquiador é acompanhado por uma “nuvem” de neve e cristais de gelo; do ponto de vista físico, esse conjunto nuvem-esquiador é um sistema que possui propriedades diferentes das que teria o esquiador sozinho. A razão pela qual isso é chamado de quasipartícula é porque não estamos realmente diante de uma verdadeira partícula, mas sim de um modelo, um construto usado pelos físicos para descrever um sistema complexo de forma matematicamente simples e, assim, podem fazer previsões sobre sua evolução e interação com o ambiente.

Superfluidade

Sabemos que os líquidos apresentam certa oposição a fluir devido ao atrito que surge entre suas moléculas e as das paredes do recipiente que os contém. Este atrito é o causador de que os líquidos não fluam suavemente por tubulações, por exemplo, mas que se produzam ondas e turbulências. Em 1937, o russo Peter Kapitsa e os canadenses John Allen e Austin Misener descobriram que, se o hélio fosse resfriado abaixo de -271ºC, transformando-o em um líquido, surgiam duas propriedades surpreendentes: a primeira, que sua condutividade térmica aumentava, tornando-se 200 vezes maior que a do cobre; a segunda era ainda mais surpreendente, pois sua viscosidade caía para uma dez milésima parte abaixo da do hidrogênio gasoso. Em outras palavras, a -271ºC a viscosidade do hélio desaparecia: isso é um superfluido. Isso significa que, ao não existir atrito com as paredes do recipiente, não há forma de contê-lo, e o hélio superfluido sobe pelas paredes do recipiente e se derrama para fora. Mas o mais interessante é que graças à superfluidade, o hélio pode se infiltrar por qualquer microburaco, mesmo aqueles com diâmetro inferior a poucas dez milésimas de milímetro.

Luz líquida e condensados de Bose-Einstein

Em 1938, Fritz London sugeriu que a transição para a superfluidade poderia ser um exemplo de um fenômeno descrito por Einstein e pelo indiano Satyendra Nath Bose em 1925: o chamado condensado de Bose-Einstein (CBE), um novo estado de agregação da matéria que se encontra abaixo do sólido. Esses dois físicos previram que quando baixamos a temperatura de uma substância muito próxima do zero absoluto, ela se converte em um CBE. Isso só pode acontecer com partículas que sejam bosons, isto é, cujo número quântico de spin seja um inteiro: 0, 1, 2, 3… As partículas (ou grupos de partículas) que possuem spin semientero (½, 3/2, 5/2…), os fermions – como elétrons e prótons – não compartilham esse destino. Assim, por exemplo, o segundo elemento mais abundante do universo, o hélio, pode ser encontrado em duas versões ou isótopos: o hélio-4 (que possui dois prótons e dois nêutrons e é praticamente o único que encontramos na Terra), e o hélio-3. O primeiro é um boson enquanto o segundo é um fermion. Esta sutil diferença faz com que ambos os isótopos tenham propriedades muito diferentes: enquanto o hélio-4 alcança a superfluidade abaixo de -270,98 °C, o hélio-3 a apresenta em temperaturas inferiores a 0,00093 graus acima do zero absoluto (-273,16 ºC).

Incógnitas

Qual é a conexão entre a luz líquida e os condensados de Bose-Einstein? Ainda não está muito claro, mas o fato de terem conseguido criar condensados de Bose-Einstein de fótons, onde estes se comportam de maneira coesa, como se fossem partículas materiais, levanta questões fundamentais sobre a natureza da luz e sua dualidade partícula-onda ainda não resolvidas. Não é estranho que a natureza precisa da luz líquida continue sendo um tema de debate. Os fótons líquidos são entidades discretas que podem fluir como um líquido, ou estamos observando um estado intermediário entre a luz corpuscular e a ondulatória? A resposta a esta pergunta poderia ter implicações profundas para nossa compreensão fundamental da luz. Por outro lado, quais podem ser as possíveis aplicações tecnológicas deste fenômeno? Será que poderíamos desenvolver dispositivos ópticos revolucionários ou mesmo alcançar a computação quântica baseada na luz líquida?